A constituição fundamental
do homem à luz da Daseinsanalyse

Medard Boss e seus alunos, a partir de 1959, reuniram-se com Heidegger por vários anos nos “Seminários de Zollikon”. Esses encontros permitiram que a Psicopatologia se enriquecesse com um pensamento fundamental e novo que procurou ultrapassar a distinção cartesiana sujeito – objeto. Esse pensamento serviu como base para a elaboração de novos caminhos para uma aproximação entre a Medicina e a Psicologia.

A Daseinsanalyse não deve ser considerada como uma escola a mais ao lado de outras, pois sua abordagem do conjunto dos fenômenos, chamados normais e patológicos, do existir humano não leva a um tesouro de conclusões científicas. Esta nova visão é mais um caminho, um meio de acesso, da medicina e da psicologia para o existir.

A abordagem daseinsanalítica é fenomenológica, procura ver sem deformações aquilo que de si mesmo se mostra a nós. Isto não é tão simples como parece, pois esbarra no hábito de pensar sob as exigências das explicações científicas que há tempo adquirimos e que nos dificulta ver a essência das coisas. É freqüente considerarmos o homem como um corpo a mais entre os outros num espaço que os contém. No entanto, o modo de ser-no-mundo que é o característico do homem, não se confunde com a maneira como as coisas em geral estão no espaço.

O existir não cessa nos limites da pele e não está contido nela. A existência é essencialmente aberta. Essa abertura consiste no poder compreender as diversas referências significativas que vêm ao encontro do ser-aí (Dasein). Assim, por exemplo, ao ver uma casa, esta ao primeiro olhar já fala ao homem como uma casa com todos os seus significados e referências específicas. Estas referências não são feitas posteriormente pelo homem, elas pertencem primordialmente à casa.

A existência pode ser comparada a uma clareira transparente e estendida para o mundo, onde tudo, do mais próximo ao mais longínquo, tanto espacial como temporalmente, pode vir a seu encontro. O existir humano é sempre um “ek-stare” no sentido próprio desse termo, é um poder encontrar-se numa livre relação com aquilo que se oferece a ele na abertura iluminadora de seu mundo. Em sua essência, o homem, relacionando-se com os diferentes entes que se apresentam, tem possibilidades de escolhas e toma decisões pessoais. Assim, ele — e somente ele — deve ser qualificado de ser-si-mesmo.

Esta possibilidade de existir no modo de ser-si-mesmo não exclui, ao contrário, inclui uma outra característica da existência: co-existir. O homem não é primordialmente um sujeito isolado que só depois entra em contato com os outros. Ele tem primordialmente o caráter fundamental de ser-com-o-outro. Co-existindo, os homens mantêm aberto este mundo “descoberto”.

Além de ser sempre no modo de ser-com-o-outro, o homem está sempre em relação com as coisas, ainda quando isso se dá sob a forma da indiferença. Ele está sempre situado numa relação de proximidade ou de afastamento com o que se apresenta a ele no mundo.

Outra marca fundamental da existência humana é a sua finitude. E é precisamente quando o homem morre que fica evidenciado também algo muito importante. Morto, ele é um corpo inanimado no espaço físico mensurável e isto ressalta a diferença entre este corpo e a corporeidade do homem vivo. Enquanto o homem existe, a Medicina não deve considerar seu corpo apenas como algo cujo conhecimento se esgota através de estudos baseados em quantificações, medidas e cálculos. A corporeidade do homem é de tal natureza que só poderá ser compreendida quando considerada como a corporeidade da relação com aquilo que se desvela para ele. Por exemplo, a mão do sapateiro que coloca uma sola num sapato não constitui uma parte objetivada de seu corpo, mas é primordialmente integrante do todo relacional da tarefa em que ele está empenhado. A verdadeira essência da corporeidade escapa sempre quando queremos vê-la como qualquer objeto mensurável.

Essas são as grandes linhas que caracterizam a constituição fundamental do ser-aí humano, e que cada um de nós é capaz de perceber a cada momento, tal qual Heidegger nos ensinou a ver. Essa concepção é de grande importância para a Medicina e para a Psiquiatria em particular. De fato, só uma compreensão da constituição fundamental do homem permite a compreensão de qualquer modo de ser-doente. Não só isso. Uma tal compreensão do homem permite-nos olhar criticamente o predomínio das Ciências Naturais e do espírito calculista e tecnológico reinantes na sociedade hoje, com todas as limitações patogênicas que disso advêm para a humanidade.

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